Sábado 23 de junho 2018/por do Sol na Praia do Garimpinho-Foto: Carlos Magno

A grandeza do mar quase não combinava com a quietude externa daquele momento. Praia deserta. Maré em vazante. Sol a pino. O barulho uníssono e calmoso das águas indo e vindo mansamente, sem pressa, ensaiando apenas a agitação das ondas tumultuosas da próxima maré, quase esquecidas da força que demonstraram não faz muito. Tudo aguardava, sem pressa ou qualquer espécie de agitação a atração do poder lunar que dali a algumas horas modificaria completamente aquele ambiente, em um devir a mais da infinita passagem da eternidade. Tudo aquilo era um grão de areia, apenas, na inimaginável imensidão do universo.

Ele, o nosso personagem sem nome e até aqui sem história conhecida, a tudo observava completamente inserido na energia do ambiente que integrava. Sentia em cada batida do coração o mesmo ritmo e a mesma calma das pequenas ondas que iam e vinham. Era como sua própria vida, que após tumultuária preamar regozijava-se com a calmaria do arrefecimento das ondas. Assim permaneceu pelo tempo que pôde. Pretendendo viver ao máximo aquela quietação já tão rara em sua vida.

Ao longe vislumbrou que se aproximava uma figura. De início disforme. Um caminhante lento, aparentemente desprevenido, que por sua postura passiva diante da paisagem em nade destoava dela. Aos poucos se apercebeu que se tratava de um senhor bem avançado na idade. Não caminhava propriamente com calma, mas com agoniante dificuldade. Mas tanto insistiu que aos poucos veio se aproximando do outro homem sentado à sombra. Não passou direto por ele. Aproximou-se de onde estava e sem dizer palavra, com natural dificuldade sentou-se a seu lado.

Nenhum cumprimentou ou estranhou ao outro. Nunca dantes haviam se encontrado, mas já se conheciam relativamente bem. Simplesmente se quedaram absortos na paisagem, se alimentando da mágica energia do momento. A eternidade lhes habitou por aquele instante.

Completamente adaptados um à presença do outro, sem qualquer questionamento sobre as razões daquele insólito encontro, o mais velho iniciou sua parlamentação. Com calma e firmeza. Convicto de cada uma das palavras que pronunciou. Sabe, seu tonto, começou dizendo sem constrangimentos, foram as leituras que te tornarão esse ser decrépito, quiçá desprezível em quem me tornei. A filosofia pretende descobrir a tudo, compreender as razões últimas de todas as coisas. Esmiúça os meandros mais inalcançáveis da racionalidade humana, mas segue absolutamente míope aos sentimentos. As ciências em geral desvelam as minúcias dos movimentos dos astros, desvendam as forças invisíveis que comandam as relações na natureza, assim como compreendem os motivos racionalmente egoísticos que os homens possuem para oprimir seus iguais em nome de uma tirânica vida social. A própria democracia se transmuda numa tirania massacrante quando impõe que uma maioria disforme e incônscia da verdadeira essência da realidade visível e invisível da humanidade decida com sabedoria os destinos de um povo inteiro. Essa é a tirania da ignomínia porque escraviza os bons e oprime os sábios.

Os verbos que tua ciência exprime, continuou, são reflexos das ações dela. Já observastes de que verbos ela se vale? Estudar, examinar, investigar, desvendar, observar, esmiuçar, pesquisar… Todos verbos de curiosidade. Nenhum relativo a sentimentos. Tua ciência não sabe amar, não consegue sentir, não admite a intuição e não se convence da verdadeira essência do homem: divina, imaterial e perfeita. Tua ciência, por exemplo, não consegue condoer-se da miséria, apenas encerra toda a fome e sofrimento do mundo em estatísticas. Muito menos se compadece do solitário isolamento do sucesso, advindo da altitude inalcançável dos currículos bem sucedidos, nem da arrogância desmedida que fazem seus protagonistas acreditarem que conhecem um pouco que seja dos insondáveis mistérios da criação. Ah, mas todos defecam e poucos deles amam.

Amar não é o que tu pensas que fazes. Não é consumir os corpos jovens, cheios de belas próteses, que tentam imitar uma beleza verdadeiramente inalcançável através dos instrumentos da ciência. Amar não é envolver-se com seguidas pessoas, sem a nenhuma delas permitir revelar sua essência. Sua verdadeira essência, não aquela máscara cirurgicamente esculpida pelo ego. Amar é compartilhar sentimentos, é revelar-se fraco, inculto e terrivelmente defeituoso. Sem medo da reprovação. Amar é seguir em frente, mas guardando no coração todos aqueles com quem já trocou esse sentimento. Não é desprezar nem odiar por causa do abandono. O verdadeiro amor não recebe paga, não pede troco. Ele seguirá constante independente do tanto de desassossego que o outro tenha te causado. Ele serena o coração mesmo quando ele está solitário.

Mas de nada disso tua ciência sabe patavinas. Ela trata é do poder. Não do verdadeiro poder, do que é capaz de construir o impossível, realizar milagres ou modificar a essência de todas as coisas. Disso ela também não entende. O poder de que trata a tua ciência é o poder dos ímpios. Dos covardes. Dos ignóbeis. É do poder, que por ser falso, é antagonicamente refratário do amor. Por isso que a infelicidade, o trauma, a traição e o engodo povoam tão ricamente a academia de que fazes parte. Por isso que a paz não te habita, que a solidão te devora e a maledicência te persegue. Simplesmente porque nunca aprendeste a amar.

Sempre te lembres que foi em nome de tua carreira, da benfazeja ciência que através de tantos sacrifícios aprendeste a dominar e que tanto falso poder te legou; foi em nome da necessidade de todas essas provações que te afastaste de tua família, olvidaste de regar o jardim florido de abnegação que aquela jovem moça te ofereceu um dia, fazendo a tua desatenção com que o jardim secasse e a bela flor murchasse. Porque em nome da racionalidade cartesiana te recusaste a mergulhar na inefável lição do amor.

Por que não compreendeste desde logo que a única verdade possível é a do amor? Por que não percebeste que a realidade está no insólito, naquilo que não é nem sólido nem material? Que a razão é pequena demais para compreender a verdadeira essência da vida? Por que precisaste dedicar toda a tua juventude às armadilhas do ego, consumindo cada gotícula da energia vital de que foste provido com jogos de poder e sedução, piamente acreditando que assim te tornarias importante e amado?

Sabes o que restará de tudo isso? Em que dará tua soberba? Neste velho decrépito, solitário, infeliz e desesperançado que vos fala. Pare com tanta perversão, permita a si mesmo um futuro mais digno. Ainda há tempo de aprender a amar…

Enfim, aquietou-se o velho, permanecendo longo tempo em silêncio, de rosto impávido, sem expressar qualquer sentimento.

A tarde já caía num lindo laranja. A luz já iniciava a rarear quando o velho bem devagar levantou-se e seguiu sua caminhada na direção oposta a que viera. O homem que ficou com respeito acompanhou o vulto o quanto pôde. Até seu vulto desaparecer no horizonte. O mar continuou calmo, com ondas leves e lentas. Mas o silencioso coração daquele homem não. Estava em polvorosa.

 

 Por Jorge Emicles

O Acontece

Os jogadores

Post anterior

Cariri: Brejo Santo recebe BPRaio e sistema de videomonitoramento

Próximo post

Veja também

Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais em Cultura